Josiane Rose Petry Veronese 22/09/2020
Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
Quantas meninas, quantos meninos são violentados em nosso país e em todo mundo? Quantas lágrimas e gemidos em quartos, porões, quintais? Quanto abandono, quanta falta de cuidado? Onde está a prioridade constitucional da criança e do adolescente?
Em primeiro lugar, na minha opinião, depois de trabalhar há tantos anos com temas afetos à criança e ao adolescente, em especial às múltiplas violências, cada vez mais estou me afastando da palavra “abuso”, porque a expressão “abuso sexual” pode dar uma conotação de um mero excesso, mero exagero.
Portanto, diante das violações que são praticadas contra crianças e adolescentes, correspondem a severas violências.
Sim, trata-se de uma violência contra a dignidade da criança, violência contra a sua liberdade sexual, na realidade estamos vivenciando uma das piores violências que pode ser cometida sobre o ser humano em formação, que é a violência de natureza sexual.
Na percepção de Freud, existem alguns crimes que são tão aviltantes, que provocam a mais absoluta repugnância, causam um enjoo no estômago, aquela vontade de vomitar. A violência sexual contra criança é uma dessas violências nominadas. Assim como os parricidas, vejamos, no parricídio a morte é pensada, desejada pelos filhos em relação aos pais, na condição de pais é que são assassinadas. O feminicídio é a mesma situação, é pela condição de mulher que ela é assassinada. E podemos situar o estupro de vulnerável. Ou seja, a criança e o adolescente violados na sua dignidade sexual, física, psicológica e emocional como um todo, enquanto criança ou adolescente. Nesse sentido, a lei penal foi muito oportuna quando da reforma promovida pela Lei nº 12.015, de 2009, que incluiu o crime de “estupro de vulnerável”: Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Portanto, estamos sim diante de uma grande violência e não de um mero abuso.
Como fazer com que a criança reconheça a violência que está sofrendo?
Em primeiro lugar é necessário que essa criança seja bem informada, desde pequena, respeitada a etapa do seu desenvolvimento. A literatura infantil se apresenta como um dos mecanismos facilitadores para que a criança, de uma forma lúdica, identifique que alguma coisa não está bem, que algo errado está acontecendo, que não se trata de carinho o que estava sendo submetida, era muito mais do que isso.
Tem um livro da literatura infantil, intitulada “Antônio”[1], escrita por Hugo Monteiro Ferreira, de uma riqueza extraordinária, porque a criança percebe ao ler esta obra ‘Antônio” – protagonista da história -, que a mão, a mão indevida que lhe tocava, lhe machucava. De modo que as suas reações: o chorar, o fechar-se, o ficar agressivo, demonstravam que algo grave estava acontecendo.
Inclusive, na obra: “Olivas da aurora: direito e literatura”[2], em que juntamente com a pesquisadora Patrícia Rodrigues de Menezes Castanha, do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – Nejusca/CCJ/UFSC, desenvolvemos uma análise desse texto, fazendo um paralelo com o direito. A literatura revela-se, pois, como importante, para uma possível identificação através do conhecimento. Nesse cenário, destaca-se o papel formativo a ser dado pela família, pela escola. Quanto maior clareza a criança tenha a respeito da sua sexualidade, respeitada a sua etapa de desenvolvimento em que se encontra, o que é fundamental em especial quando pensarmos na importância da prevenção.
No cenário da violência sexual, pode vir a ocorrer uma gravidez. O que fazer? O Código Penal Brasileiro, que é de 1940, possibilita – o que não significa, de modo algum, a obrigação da prática do aborto para os casos em que a gravidez coloque em risco a vida da mulher ou tenha resultado de um estupro – art. 128, CP[3], mais a possibilidade assegurada à gestante de se submeter à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos assentada na jurisprudência[4].
Insisto, a lei penal não determina a obrigatoriedade do aborto. Ela, na realidade, despenaliza. Essa é uma postura do Código Penal. E pergunta se é respeitado, sim, respeita-se.
Mas diante do caso concreto, quando a vítima de uma violência sexual é uma criança, alguns senões devem ser observados. Exatamente por isso que este crime violento precisa ter uma leitura interdisciplinar. Não é apenas o direito que tem que falar, também a medicina, a psicologia. São várias áreas que têm que pensar e atuar juntas.
É muito grave a situação no Brasil! De modo algum não há que se pensar simplesmente no aborto como a resposta simplista ao estupro, como uma solução pronta e “barata”. Nós temos que atuar na prevenção e nas múltiplas formas de obstar a violência sexual, um atroz crime hediondo.
Temos que ter muito mais mecanismos preventivos, abandonar uma cultura patrimonialista e patriarcal em que o homem se considera dono de tudo: dono de seus bens, dono da mulher ou companheira, dono de seus filhos. E é por isso que o a violência sexual se vincula com o tema da violência doméstica, são várias situações que, na realidade, têm essa mesma matriz.
A criança é coisificada, não se trata simplesmente de fazer dessa complexa questão, reduzindo-a ao aborto. Infelizmente, a maioria das violações de natureza sexual ocorrem dentro das casas, por parte de um parente que lhe era próximo.
Então temos que pensar exatamente na punição do adulto estuprador e resguardar as crianças, apoiá-las, inseri-las na rede de garantia. Quando estava analisando o caso da menina do Espírito Santo, de 10 anos, grávida após estupro praticado por seu tio, conversei com uma pediatra, Dra. Eliane De Carli, a respeito da realidade dessa criança em termos da sua estrutura fisiológica. Como é a situação de um aborto para uma criança e um adolescente. A resposta, vindo da área médica, não é daquelas que nos tranquiliza, vez que, segundo a pediatra, “o aborto não é algo fácil. Precisamos respeitar e apoiar a decisão tomada, porém, apresentar opções e apoio concreto tanto para a opção do aborto como para a manutenção da gestação Muitas meninas ou mesmo mulheres que se submetem a um aborto, ficam com severas marcas. O trauma psicológico decorrente também é gigantesco”.
Desse modo, a grande solução, a grande solução humanística é exatamente impossibilitar as violências sexuais. Evidente que isso dá trabalho, sim, mas uma sociedade que prima pela preocupação com a criança ou adolescente estaria concretizando a premissa constitucional da criança e do adolescente como prioridade absoluta. Uma família, uma sociedade, um estado sério, ético, cidadão, é o que deveria fazer de tudo para cuidar efetivamente das crianças e adolescentes, de modo que não fossem submetidos a nenhum tipo de violência.
Enfim, na minha opinião, toda a violência sexual praticada contra criança é na realidade um crime contra a humanidade. Há alguns anos atrás organizei uma coletânea: “Violência e exploração sexual infanto-juvenil: crimes contra a humanidade”[5], em que insistia nesta questão: a violência sexual contra crianças e adolescentes tratam-se de crimes contra a humanidade.
Eu não consigo visualizar de outro modo senão sob este olhar: toda vez que uma criança é aviltada, toda vez que uma criança é violada, é a humanidade toda que se machuca, a humanidade toda é violentada. Quando o ser humano passa a praticar crimes desta natureza ele se bestializa, pede a sua condição humana e passa a produzir uma barbárie desse tamanho que é violar uma criança.
Link do artigo: https://emporiododireito.com.br/leitura/violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-para-muito-alem-do-abuso