POR UMA JUSTIÇA ANTIRRACISTA

A postura antirracista exige, em primeiro lugar, no ato de ver o racismo, Diz Djamila Ribeiro. Não se trata apenas de procurar pelas agressões físicas e verbais, estas também são importantes, mas talvez, hoje, pelas condições que tornam públicos os comportamentos, as pessoas não se encorajam a discriminar se valendo de ofensas desta natureza, e é claro que isto não significa que o racismo tenha deixado de existir, apenas passou a se reproduzir de maneira mais sofisticada.

O convite a esta primeira atitude antirracista é sobre ausências normalizadas. Ver o racismo estrutural e institucional exige empatia para entender porque há lugares racialmente demarcados, sendo aqueles sem expressão de poder sempre dirigidos à população negra. As instituições do sistema de justiça, inseridas nos espaços de poder, são um bom retrato para vermos o racismo.

Quantos servidores, servidoras, delegados, delegadas, defensores, defensoras, advogados, advogadas, promotores, promotoras, juízes, juízas, procuradores, procuradoras, desembargadores, desembargadoras, ministros e ministras, que são pardos e pardas ou pretos e pretas, portanto, negros e negras, estão atuando no sistema de justiça, representando os 56% da população brasileira que se autodeclarada negra?

Mais do que perceber é preciso compreender as ausências. Mais ainda, ter sensibilidade para não defender o equivocado discurso da meritocracia para este contexto.

As ações afirmativas no âmbito do Poder Judiciário é uma realidade há mais de cinco anos. Os concursos para servidores e magistrados reservam vagas para candidatos autodeclarados negros. Uma medida que, apesar de importante, não pode ser a única, pois conforme previsão do Conselho Nacional de Justiça, com as cotas, apenas no distante ano de 2049, teremos no Judiciário brasileiro, 22,5% de juízes e juízas negros, segundo o CNJ. Hoje somos 18,4%.

Além de mudar esta realidade, a justiça antirracista não se contenta apenas com ingresso de agentes negros e negras nos seus quadros, ela se reinventa enquanto instituição, para fazer das presenças negras o reconhecimento da diferença, de uma diferença viva, pulsante e acima de tudo pertencente.

Para tanto, algumas práticas precisam ser desconstruídas, a começar pela formulação da missão do sistema de justiça, que sem atravessar o enfrentamento das desigualdades raciais nos objetivos institucionais, permaneceremos apenas no culto às ausências.

Esta atitude exige mudança paradigmática no campo da formação jurídica, desde o ensino nas graduações até a instrução promovida pelas escolas oficiais, para servidores e magistrados. Além do combate ao epistemicídio negro (são raras as obras jurídicas de autores e autoras negros), o direito concebido como uma prática interpretativa para justificar medidas de coerção estatal não se legitima se permanecer enviesado por leituras abstratas, neutras e universais que não dão conta de horizontes históricos marcados por relações sociais forjadas na hierarquização de grupos sociais, a partir da raça.

Impossível compreendermos o direito à igualdade sem que a negritude seja uma “postura interpretativa” como defende um dos maiores juristas brasileiros, Adilson Moreira. Não se enfrenta decentemente a violência doméstica e a sobrecarga tributária causadora de redução da pobreza, sem compreender os papéis sociais submissos atribuídos à mulher negra. Da mesma forma, o direito de propriedade não encontra sustentação em princípios morais se persistir no distanciamento da questão racial.

A justiça criminal antirracista tem desafios complexos, não se trata de déficit de justiça pela ausência de compreensão das relações raciais, conforme exposto retro, mas talvez excesso de “justiça”, infelizmente não no sentido de proteção dos direitos, o que exige a desativação de estereótipos que circulam atribuindo sentidos que tornam o homem negro o sujeito perigoso, dado à vida criminosa e desestabilizador da ordem pública. Esta atitude de tradução desta representação social é medida que restaura o direito penal do fato, clara escolha constitucional vigente.

O modelo de justiça antirracista não é uma invenção destes dias recentes, está lá no art. 3º, da nossa Constituição cidadã, anunciadora das promessas de liberdade, justiça e solidariedade.


Juiz Fábio Esteves
Possui graduação em DIREITO pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2003). É Especialista em Direito Público pela Universidade Gama Filho e Mestre em Direito de Estado pela Universidade de Brasília – UNB. Atualmente é Juiz de Direito – Tribunal de Justica do Distrito Federal e Professor da Escola da Magistratura do Distrito Federal. Tem experiência na área de Direito Constitucional e Administrativo.

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